quinta-feira, 29 de março de 2007

"Legenda Aurea": as virtudes e a vida exemplar dos santos

http://www.pem.ifcs.ufrj.br/Martires.pdf

".... os textos literários relativos aos santos, forma de perpetuar a memória destes homens e mulheres, são construídos de acordo com estereótipos narrativos que formam um personagem dado. Nesse tipo de literatura encontramos vários traços comuns e até mesmo eventos semelhantes. Mais importante do que o nome do santo é o modelo construído.
Nas hagiografias, o objetivo primário do autor não é compor um relato biográfico do santo, mas antes retratá-lo como exemplo de virtude cristã. Hagiógrafos também procuravam mostrar como os santos tinham imitado tais normas, particularmente aquelas estabelecidas pela vida de Cristo e de outros santos. Assim como os religiosos encorajavam sua audiência a imitar o exemplo dos santos, também pregavam os modelos literários oferecidos pela Bíblia e por obras hagiográficas anteriores, boa parte delas ainda da antiguidade. Estórias, temas, e motifs, eram repetidas de uma vida de santo a outra, e cada hagiógrafo adaptava o seu reservatório de material tradicional às necessidades da narrativa que tinha em mãos. O efeito, sem dúvida intencional, era, em parte, enquadrar a particularidade de uma vida de santo dada em um tipo generalizado de santidade, tais como a mártir, a virgem ou o santo bispo. Esse uso de modelos ajudava no propósito moral e didático das hagiografias.
Contudo, não podemos nos deixar levar por esse caráter tradicional da hagiografia. Os modelos
de santidade
mudavam consideravelmente através dos tempos, conforme o uso que cada novo autor fazia deles, desta forma alterando a tradição existente (DUBY, 1988, p.94.). Assim, mesmo sendo inconsistentes no que se refere à dimensão histórico-biográfica, personagens como São Jorge, Santa Catarina de Alexandria e outros se tornaram figuras importantes da devoção cristã medieval, justamente devido à produção hagiográfica sempre renovada de acordo com a mudança das exigências culturais, eclesiásticas e políticas. O santo mártir antigo continuará vivo na literatura e no culto, permanecendo firme como um modelo (BOESCH GAJANO, 2002, p. 455.).
Indubitavelmente a produção hagiográfica medieval apresenta traços peculiares que a distancia,
inclusive nas obras dedicadas aos mártires antigos, das primeiras atas escritas sob o signo da perseguição, nas quais, geralmente, não havia lugar para detalhes biográficos nem prodígios. É assim que ocorrerá a substituição de uma literatura utópica, expressão de uma minoria perseguida, pela literatura ideológica a serviço de uma Igreja que, ao converter-se na Idade Média em elemento fundamental do poder, tende a manter o sistema de valores. Não obstante, o santo, como herói épico, por suas qualidades místicas e sobre-humanas, pode chegar a enfrentar-se com a ordem social existente e desafiar a hierarquia instituída.
Evidentemente, a passagem da forma literária das Atas às Vitae não se dá bruscamente. Destarte, entre os séculos V e VIII, os elementos biográficos se incorporam também aos relatos de tema martirial, dando lugar a diversos tipos de paixões (BAÑOS VALLEJO, 1989, p. 39.). Reparando sobre a evolução entre as primeiras atas dos mártires e a hagiografia merovíngia, carolíngia e hispano-visigoda, Baños Vallejo conclui que estas constituem o autêntico precedente da hagiografia medieval. Possivelmente a demanda de textos hagiográficos provocou a necessidade de se recorrer a fórmulas e esquemas. Dentro da tendência assinalada, multiplicaram-se os milagres, pois cada vez se identifica mais a santidade com a taumaturgia".
O artigo “A Legenda Áurea e o Exemplum”, p. 66. Publicado. na Preá nº 3, assinado pelo professor João da Mata Costa.

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