sexta-feira, 30 de março de 2007

A viagem na idade média e imaginário clerical do paraíso

"O século XIII irá trazer grandes modificações a este panorama, invertendo-se a tendência histórica do Ocidente como civilização rural e continental, com o início do seu processo de expansão territorial; no quadro desta mutação e com o acesso às novas informações que ela implicou, a concepção latina de espaço perde força e viaja-se sobretudo por motivos ligados a interesses económicos ou clericais.
Com essas viagens, surgem relatos que podem ser agrupados em três grandes grupos de textos, nos quais é possível identificar os motivos principais do respectivo imaginário: o dos mareantes, mercadores e populações urbanas (de que o Livro de Nicolau Venetto ou o Livro de Marco Polo são exemplo), o dos nobres e o dos clérigos e dos letrados. Estas narrativas de viagem medievais distribuem-se, pois, por diferentes quadrantes e encontram-se ligadas a diferentes motivações mas, no geral, são um terreno de exploração difícil, suscitando problemas no que se refere ás suas origens, variantes, recepção, transformação e mesmo significação. No entanto, todas parecem implicar verdadeiros códigos de conduta, explicitando modelos de comportamento e construindo paradigmas de virtude, cristalizados nos seus heróis.
Em termos do imaginário clerical, é possível encontrar uma literatura hagiográfica constituída por relatos de vidas de santos e de peregrinações. Estas últimas, como prática cultural que se sobrepunha à vida terrestre, exprimiam a inutilidade deste mundo, constituindo-se como uma procura e uma demanda.
Intimamente ligada a esta última vertente da hagiografia, a viagem imaginária vai surgir fundamentalmente como uma interrogação sobre o universo, como uma tentativa de apropriação de ideais e palavras que levam à reconstrução verbal de um espaço mítico, de um espaço de substituição relativamente a um mundo tido por conhecido e comum ao leitor e ao autor. Pelo conjunto de conhecimentos na base dos quais se constrói, propõe um verdadeiro itinerário intelectual, constituindo-se como um percurso iniciático.
A literatura visionária da Idade Média apresenta um conjunto de texto em que a viagem imaginária surge essencialmente conotada com a procura de conhecimento espiritual, como uma metáfora sobre a procura de conhecimento. Nestas viagens, o importante é o significado simbólico, numa época em que a própria realidade era entendida como uma hierofania. É comum a estes textos o estabelecimento de um espaço diferente do humano e imperfeito e a denotação do desejo de ascensão a um espaço de felicidade, que seja o prémio do homem justo. Trata-se de um tema universal e a construção desses espaços opera-se a partir de elementos da realidade que cerca o homem e de arquétipos conotados com a felicidade almejada".

A visão final desejada: o paraíso terreal - O conto de Santo Amaro
"A ordem de Cister foi a renovação da de S. Bento7 e a vida claustral destes monges era baseada na disciplina, na austeridade e no colectivo quotidiano; as suas principais ocupações consistiam na oração e no trabalho manual, incluindo-se nele a obrigação de efectuar "treslados". Foi este o contexto em que surgiram os fecundos scriptoria medievais, devendo os monges dedicar-se igualmente ao estudo de livros sagrados, patrísticos e de edificação religiosa. São numerosos os textos que dão conta dessa infatigável actividade de escrita, alguns impressos nas primeiras décadas do século XVI, mas remetendo para uma escrita bastante anterior. Todos eles surgem associados a uma certa forma de pedagogia religiosa e cristã, mas que não exclui uma vertente social, como já houve oportunidade de referir. Para além do Conto de Amaro, poder-se-ão citar como exemplos a Regra de São Bento, a Vida de Santo Aleixo, Santa Maria Egipcíaca, História do Cavaleiro Túndalo, o Boosco Delleytoso Sollittario, Vida e Milagres de Santa Isabel, Vergel de Consolaçam, entre muitos outros.
Muitos destes textos são considerados de qualidade literária8, não obstante a sua funcionalidade específica e declarada. Constituem códigos de uma moral estrita, de acordo com os modelos de religiosidade da época e surgem, simultaneamente, como veículos e repositórios de um sistema de valores e de categorias culturais, definidores da mentalidade e sensibilidade medievais, como modelos de acesso e convivência com o Sagrado. Os valores que neles ressaltam são a pobreza, a obediência, a castidade, a abstinência, o respeito pelas hierarquias, a temperança, consubstanciados em prédicas, exortações ou exempla, em pequenas histórias ou contos exemplares, como no caso do Conto de Amaro. O símbolo e a alegoria são igualmente outro registo dessa função pedagógica: efectivamente, o sincretismo de sistemas, o progressivo desvanecimento de determinados valores e a ascensão de uma mentalidade enformada por valores cristãos, encontram no milagre, no exemplum, no símbolo e na alegoria os modelos preferenciais para a fixação de sistemas e categorias.
No geral, estes textos apresentam como característica a oscilação entre o fantástico e o maravilhoso, sendo a narrativa o seu modelo privilegiado de discurso. Apesar disso, a prosa hagiográfica recolhida nas maiores colectâneas medievais portuguesas9 apresenta poucos relatos de visões do Paraíso (o que não se verifica na bibliografia hispânica do mesmo período, quer em latim, quer em espanhol10); nessas compilações, nas quais se encontram cerca de duas centenas de narrativas de vidas de santos, só três apresentam esse género de relato: a de S. Patrício, a de S. Barlaão e a de S. Amaro".

Nenhum comentário: